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Artigo de opinião: “Um sindicato sórdido”

Luis-Aguiar-Conraria_finalO medo não pode tomar conta de nós. É obrigação dos líderes de organizações que nos representam combaterem-no e promoverem a racionalidade

Numa altura em que por todo o mundo civilizado há cada vez mais consciência da necessidade de reabrir as escolas, em Portugal, a oposição vem de onde é menos razoável que venha: do principal sindicato de professores, a Fenprof. E essa oposição é feita de uma forma vil. Mário Nogueira ameaça o Ministério da Educação dizendo que, caso haja “situações de doença e de contágio, que possam pôr em causa a própria vida, a Fenprof acusará como responsável moral, e eventualmente até material pelas condições que não criou para que as escolas funcionassem, o Ministério da Educação, com a cumplicidade da Direção-Geral da Saúde”.

Não basta à Fenprof dizer que o Ministério da Educação é o responsável moral ou político por problemas que venham a existir nas escolas, fala mesmo em responsabilidade material. Objetivamente, ameaça com tribunais. E, desde que Leonor Beleza, antiga Ministra da Saúde, teve de responder em tribunal pelo crime de propagação de doença infeciosa, com dolo eventual (nem sequer foi por negligência), por causa de sangue contaminado, uma ameaça destas é credível e assustadora. Ora, isto é inadmissível.

As instruções dadas às escolas são proporcionais com o que se sabe sobre os riscos da doença. Na verdade, até poderão ser excessivas, mas não vou por aí. Mais vale pecar por excesso e depois ir cortando nos exageros. Repito: com o que se sabe, não com o que se especula. É muito improvável que haja crianças com menos de 18 anos que tenham problemas sérios com esta doença. Claro que poderá haver uns casos, mas não é um risco superior ao de muitos outros que aceitamos bem, como atropelamentos em frente às escolas ou o vírus da gripe.

Sim, leu bem. Entre crianças, a gripe parece ser mais letal do que o novo coronavírus. De acordo com um estudo publicado na revista médica JAMA Pediatrics, até 28 de Abril tinham morrido nos Estados Unidos 8 crianças com covid e 169 com gripe. Isto entre crianças com menos de 15 anos. Este e outros dados levam os autores “enfatizar que os custos associados às infeções com covid-19 em crianças são relativamente baixos quando comparados com a gripe sazonal” — tradução minha.

A principal medida que se contesta é a de que os alunos devem estar, no mínimo, a um metro dos colegas, podendo, caso não haja condições, ser menos. Mas esta distância é razoável. Tratando-se do grupo etário com menor risco de todos, não se justificaria que o distanciamento fosse o mesmo que é exigido na generalidade das situações. Além disso, acima dos 10 anos, já se exige que as crianças usem máscaras para reduzir os riscos. E se, como sabemos, já há escolas que não conseguirão cumprir o desejado metro de distância, seria irrealista exigir ainda mais. E, na verdade, nada disso interessa para os professores, esses sim com maior risco. Quer as crianças estejam a um metro umas das outras quer estejam a metro e meio, o professor estará junto ao quadro. É a distância entre o professor e a fila da frente que tem mesmo de ser assegurada. Vale a pena lembrar que já em vários países se retomaram as aulas e que não há indicações de a pandemia se ter agravado seriamente por causa disso. Há apenas um ou outro foco localizado com que, naturalmente, se tem de lidar localmente.

Posso assegurar que não há riscos? Claro que não. Todos temos medo e eu sei bem o que isso é. Tenho uma filha de 12 anos com uma doença que a coloca nos grupos de risco. Mas o medo não pode tomar conta de nós. É obrigação dos líderes de organizações que nos representam combaterem-no e promoverem a racionalidade. Ter a Fenprof a instigar o medo, fazendo uma chantagem que, se bem sucedida, terá como único efeito adiar o regresso às aulas presenciais, é sórdido.

Fenprof mw-960

Ontem, em Coimbra, cruzei-me com o cartaz que vêm na foto. Nesse cartaz, feito por sindicatos afetos à Fenprof, diz-se que as escolas e os professores são insubstituíveis. Não posso estar mais de acordo: sem a escola, não é possível combater as desigualdades económicas, sociais e culturais. Só com a escola, e com os professores, os portugueses poderão alargar os seus horizontes e Portugal desenvolver-se. E, como cada vez mais estudos demonstram, essa escola tem de estar fisicamente presente. As crianças precisam de ver os seus professores (e vice-versa, diga-se, mas não é esse o tema de hoje).

Sem uma escola presencial, o país continuará a meio gás — com as mulheres, mais uma vez, a serem especialmente sobrecarregadas, agravando-se assim uma forte fonte de desigualdade em Portugal. E, se, na verdade, grande parte dos perigos associados à covid são especulações com pouco suporte científico — os jornais noticiam como factos o que muitas vezes não passam de hipóteses ou exceções —, já os danos económicos e sociais do estarmos enfiados em casa são cada vez mais claros. Se não conseguirmos sacudir o medo que nos rodeia e aprendermos a viver com o vírus, a catástrofe económica e social é certa.

Não faz sentido combater riscos incertos com táticas que são um desastre certo. É como se alguém decidisse cortar uma perna por causa de um caroço com mau aspeto que lá nasceu. Até pode ser a decisão certa, mas antes de se cortar a perna é necessário confirmar que é mesmo necessário.

Luís Aguiar-Conraria

At https://expresso.pt/

Artigo de opinião: “Quando a capa de um jornal não bate certo com o seu editorial”

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1. A 27 de junho, com a divulgação da ordenação de escolas, Manuel Carvalho defendeu, em editorial no Público, que «os rankings não servem para criar hierarquias de escolas no sistema» mas sim, «pelo contrário, para provar que, em igualdade de circunstâncias, há escolas que brilham e outras nem tanto». E acrescenta, aproveitando para criticar os críticos, que hoje «os pais ou os professores sabem que a ordenação de acordo com as notas tem apenas uma função indicativa». Ou seja, «sabem que não é possível comparar uma escola pública de um bairro urbano de classe média alta com uma outra de um bairro habitado por população desfavorecida».

2. Talvez Manuel Carvalho não se tenha apercebido, mas quando se escolhe para destaque, na primeira página do jornal, que «os colégios privados ganharam terreno» face à escola pública, o Público presta justamente serviço àquilo para que os rankings «não servem», segundo o seu diretor (isto é, para «criar hierarquias de escolas no sistema»). Porquê? Porque continuando os colégios a não disponibilizar dados sobre o perfil sócio-económico dos seus alunos (habilitações dos pais e benefício de Ação Social Escolar), ao contrário do que fazem as escolas públicas, não é possível demonstrar, em termos de comparação público-privado, que «em igualdade de circunstâncias, há escolas que brilham e outras nem tanto». Ou seja, aquilo para que os rankings «servem», segundo o próprio Manuel Carvalho.

3. Por outro lado não sabemos, e era importante sabermos, em que é que o diretor do Público se baseia para afirmar que hoje «os pais ou os professores sabem que a ordenação de acordo com as notas tem apenas uma função indicativa», não sendo influenciados nas suas escolhas, deduz-se, pela simples ordenação das médias de exames. Fez algum inquérito, conhece algum estudo? Tem algum dado objetivo que suporte essa ideia ou é mesmo só «achismo»? Como explica Manuel Carvalho que as escolas privadas continuem reiteradamente a não fornecer dados do perfil sócio-económico dos seus alunos, se os pais, como diz, sabem que não é possível comparar uma escola «de um bairro urbano de classe média alta com uma outra de um bairro habitado por população desfavorecida»? Tem a certeza de que não é pelo risco de os privados saírem mal na comparação, por procederem à seleção dos seus alunos?

4. Se o diretor do Público quiser mesmo levar a sério a «utilidade» dos rankings, nos moldes em que o próprio a define («provar que, em igualdade de circunstâncias, há escolas que brilham e outras nem tanto»), faça uma opção editorial em coerência no próximo ano: exclua da análise, logo à partida, todas as escolas privadas que não lhe fizerem chegar dados sobre a informação sócio-económica dos seus alunos, evitando assim manchetes e conteúdos manhosos, redutores e, por isso, perversamente desinformativos.

Adenda: Como é sabido, o Ministério da Educação está desde 2001 obrigado, por força de decisão judicial, a fornecer os resultados dos exames aos meios de comunicação social, que procedem, eles próprios, à elaboração de rankings. Isto é, não podendo exigir-se ao ministério que apenas disponibilize informação relativa às escolas que enviam dados sobre o perfil sócio-económico dos seus alunos, cabe aos próprios meios de comunicação (e às escolas privadas que concordem com a partilha desses dados, por uma questão de transparência ou pelo facto de não incorrerem em práticas de seleção de alunos), assegurar a necessária seriedade e rigor do processo.

Nuno Serra

At https://ladroesdebicicletas.blogspot.com/

Artigo de opinião: “Mas o que é isto de festas ilegais?”

Adolfo-Mesquita-NunesVamos lá ver se nos entendemos: este conceito de festa ilegal que as autoridades públicas agora criaram não passa de um artificio para descartar quaisquer responsabilidades na persistência do surto pandémico. Pior do que um artificio: começaram a criar o muito provável bode expiatório, em particular os jovens.
As autoridades públicas sentiram-se à vontade para autorizar celebrações e manifestações, sempre com desculpas mais políticas do que sanitárias, e queriam o quê? Que o resto das pessoas não olhasse para o despropósito de ajuntamentos ao arrepio das regras que se aplicam a todos e não ficasse a pensar que a coisa afinal não passava de um exagero?
As autoridades públicas, a reboque de todas as iniciativas políticas do Estado, sempre prontas a dizer que não há qualquer problema nisto ou naquilo desde que lá esteja um membro do Governo a enfeitar ou a mandar, esperavam o quê? Que o resto das pessoas achasse que precisava de convidar um membro do Governo para a sua celebração, para a sua comemoração, se tornar legal, aceitável?
Desde quando é que é só é admissível a festa que a DGS politicamente aceita? É que a aceitação da DGS é política, note-se, porque os critérios sanitários são sempre descartados quando a DGS se pronuncia a favor de um ajuntamento.
Não estamos sequer perante a circunstância de haver um formulário a preencher por todos os que pretendam ajuntar-se, esperando por um deferimento do pedido. Isso já seria surreal.
Estamos perante coisa pior: há uma proibição geral, que as autoridades vão levantando com critérios que escapam aos critérios sanitários. Ele é porque é bom que venham turistas, ou porque há datas que se impõem, ou porque há valores que se levantam ou porque é um prémio pelo bom comportamento de Portugal.
É sempre tudo político, nunca sanitário. Estava a DGS à espera de quê? Estava o Governo à espera de quê? Que a população lhes conferisse esse poder político, esse poder de definir o que é que pode ou não celebrar-se em Portugal? Que nos remetêssemos à inaceitável condição de seres pouco livres, a precisar de um carimbo do Estado para validar a razão do ajuntamento?
E dizem-nos que há uma pandemia em curso, que nos mobiliza a todos. Há? Não é isso que parece quando os representantes políticos se passeiam, nem quando se associam a celebrações, nem quando dizem que há alturas em que se pode violar a regra, nem quando se caminha em grupo e fotografa em grupo a mostrar que o pior já passou, nem quando se usam argumentos surreais para explicar as excepções sucessivas que se vão autorizando.
É esse exemplo, esse persistente exemplo, sempre com o milagre na boca, que outra coisa não fez que não recordar-nos de que somos donos de algo que as autoridades só aceitam em alguns: liberdade.
Nem é questão de não haver milagre algum, é mesmo a insuportável arrogância de quem acha que as regras só se aplicam aos outros, de quem acha que pode cavalgar a onda quando ela parece vencida e colocar as culpas no povo irresponsável quando a onda se mostra por vencer.
Porque é disso que se trata, não tenhamos dúvidas: de construir a narrativa de que estava aí um milagre e foi o povo irresponsável que o comprometeu com as suas ilegais veleidades. Narrativa útil ao Estado, que infelizmente tem tudo para pegar porque há sempre na sociedade quem precise do conforto do culpado, do bode expiatório.
Não esperem é que não haja quem repare na estratégia: não, não foram as “festas ilegais” a comprometer o milagre. E é inaceitável que o Estado, seja por que autoridade for, venha emitir juízos morais sobre os ajuntamentos que a população decide organizar no uso da liberdade que a DGS só reconhece a alguns.

Adolfo Mesquita Nunes

At https://www.jornaldenegocios.pt/

Artigo de opinião: “Votar no Marcelo? Não, obrigado”

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Tendo nascido em 2002, as eleições presidenciais de janeiro de 2021 serão as primeiras eleições em que poderei votar. O sufrágio universal e a democracia são conquistas indispensáveis para a concretização de uma sociedade justa, e cabe à minha geração lutar por essa mesma sociedade e dar uso aos direitos que tanto suor custaram.

Como penso por mim mesmo e nunca segui modas e tendências momentâneas, não votarei Marcelo Rebelo Sousa. E não votarei por motivos morais, ideológicos e sociais.

Creio que sempre que falamos do nosso Presidente devemos nos recordar que figura política ele foi no passado (e continua a ser). Falamos de um político que avançou com uma plataforma, denominada de “Assim Não”, contra a despenalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG). Segundo a interpretação de Marcelo Rebelo de Sousa, a mulher podia fazer um aborto, mas apenas às escondidas, nas condições em que pudesse pagar e arriscando-se a ser presa ou a morrer por complicações de saúde. Na prática, podia abortar num sítio sem o mínimo de condições higiênicas, mas nunca num local seguro e com as melhores condições de segurança e de dignidade. Ainda bem que a população não deu ouvidos a Marcelo e votou a favor do sim. Os ganhos da IVG são claros: zero mulheres mortas após a legalização da IVG e uma descida significativa no número de abortos em Portugal.

Mas as opções que Marcelo toma durante a presidência também nos devem preocupar. Como atravessaria este país a atual pandemia que vivemos, caso houvesse mais Parcerias Público Privadas na saúde, como o nosso presidente defendeu? O que seria deste país, nesta e noutras crises de saúde, sem a atual Lei de Bases da Saúde, que Marcelo Rebelo de Sousa se manifestou profundamente contra? Questiono-me igualmente se Marcelo, após o desastre levado a cabo por Bolsonaro nesta pandemia, continua a ter a mesma opinião que teve o ano passado, dizendo após uma reunião com o Presidente do Brasil que se tratava de “um encontro de irmãos”.

A minha geração, felizmente, tem uma visão do mundo mais progressista e ampla que a dos nossos pais. Visão essa que aceita o direito à diversidade sexual e de identidade de género. É pena que Marcelo Rebelo de Sousa aparente não o aceitar. Tanto aparenta que até vetou uma lei que permitia o “alargamento da possibilidade de mudança de identidade de género, tornando-a independente de qualquer avaliação clínica e passa a incluir os menores acima dos 16 anos no regime que se estabelece para os cidadãos maiores”. Mas, afinal, quem melhor que nós próprios para decidir quem somos e como nos queremos apresentar ao mundo?

No fundo, Marcelo Rebelo de Sousa é uma espécie de lobo em pele de cordeiro, que abraça meio mundo e dá muitos beijinhos, mas que estruturalmente é um homem alinhado com a política de centrão (tanto que já foi líder do PSD!) e que protege sempre os interesses do status-quo. Marcelo não representa nem a mim, nem às gerações que anseiam por prosseguir o caminho para um país mais livre e mais justo. Pode e será difícil tirar este populista astuto do poder, mas todos os votos contarão, um a um.

É tempo de mudança.

Eduardo Couto

At https://correiodafeira.pt/

Opinião: “O Jovem Conservador de Direita não tem noção alguma do país”

Raquel 9719966António-Coimbra-de-Matos-e-Raquel-VarelaContaram-me que um site chamado Jovem Conservador de Direita (não conhecia, confesso) terá feito umas piadas sobre mim quando referi na RTP que hoje os filhos dos pobres têm bons telefones, ser rico é ir para acampamentos ao ar livre, portanto o problema central da educação não está em ter acesso às tecnologias, expliquei. Ele tem que produzir materiais e tentou argumentar que eu era uma intelectual da esquerda caviar, que viveria num castelo, e que não sabe que os pobres não têm bons iPhones. Ao que parece a coisa teve muitos comentários e partilhas. Conheço algo da sociologia do país e pertenço, infelizmente, a uma “elite” intelectual. Os filhos dessa “elite” nunca tiveram Play-Station, já conhecem metade dos países da Europa com 18 anos, todos os grandes museus, e qualquer semana de férias num ATL de surf não custa menos de 200 euros, por semana, 350 se for com dormidas, dois filhos são um salário mínimo por semana. O simples acto de ir ao cinema com pipocas dois filhos custa 20 euros, ou 30 euros se for com jantar. Só uma elite o faz. Vão também a Inglaterra uma vez na vida passar 15 dias num lugar idílico, custa 4000 euros, 13 Play Stations.

Os filhos dos outros, a larga maioria de quem trabalha, estão na TV, no Telefone e na Play Station – e aí que vão passar as férias e é aí que passam os dias, sozinhos. A vida de quem vive do trabalho cabe num telefone e numa consola. Por isso não é vida alguma.

Nada é tão barato na educação de filhos como um bom telefone. Este fim de semana fomos visitar o Palácio da Pena, a entrada-família custou 49 euros!, se somarem o almoço, 18 euros por pessoa, nenhum luxo, a gasolina e os magníficos travesseiros da Piriquita só numa manhã teríamos comprado uma Play Station. Sim, as classes trabalhadores, mesmo as qualificadas, estão com estes salários condenadas a ver os seus filhos terem os cérebros destruídos em horas de carregar num polegar a que chamam jogos, mas não há nada de “brincar” em algo assim. A brincar estão algumas, poucas, crianças e jovens, em acampamentos divertidos que custam por semana um salário mínimo. Não é preciso ser um estranho adepto de Permacultura ou vegan – eu não sou. Há uma linha que separa hoje quem brinca e quem vê os outros brincar. Do lado dos obesos, ou dos sem sociabilidade, dos que passam as tardes sozinhos, dos analfabetos-motores, estão cada vez mais crianças e jovens.

O Jovem Conservador de Direita não tem noção alguma do país, mas ao que parece tem milhares de seguidores (não surpreende). Os quais se entregaram a despejar insultos contra mim porque, segundo o JCD, eu sou uma intelectual da esquerda caviar que não sabe como vivem os “pobrezinhos”. Parece que tem sentido de humor. Como sou adepta do riso, porém, aconselho-o hoje a fazer uma piada com os incentivos políticos a que se viaje cá dentro este ano. Com estes salários não há mercado interno, a larga maioria dos portugueses não terá como viajar cá dentro. E, creio, a maioria nunca visitou ou visitará o Palácio da Pena. Era com isso que um néscio como o JCD devia preocupar-se e menos com os “intelectuais da esquerda caviar”. Já devia ter compreendido, a esta altura da vida, que os intelectuais da esquerda caviar têm tanto de amor à classe trabalhadora como de desprezo aos tipos que escrevem na internet ou comentam nos media baseados em superficialidades, eles são aliás a nossa barrigada de rir favorita em qualquer bom jantar da esquerda caviar, os ignorantes atrevidos. Todo o nosso saber, aqui na esquerda caviar, é mobilizado a favor de quem-vive-do-trabalho, e usado para escarnecer de cretinos como ele que adoram comentar a vida do país e não conseguem dar um sinal de vida inteligente dentro de si ou de conhecimento da realidade.

Agora regressamos ao que importa: como garantir que todas as crianças e jovens em Portugal podem voltar a brincar, socializar, conhecer o país, fazer excursões, ter amigos reais. Essa é a nossa questão, que urge. Tem que haver, como diz o professor Carlos Neto, um programa nacional que decrete o estado de emergência de brincar. Temos que desprivatizar o brincar, e socializar o acesso à cultura e ao património natural e histórico.

Raquel Varela

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Artigo de opinião: “A nova ordem sanitária e o policiamento da vida colectiva”

Santana CastilhoVive-se, assim, numa cidadania apenas simbólica, tutelada pela polícia e pela Direcção-Geral da Saúde, que têm agora o monopólio do espaço público.

1. A declaração de calamidade não suspende, muito menos suprime, direitos laborais, sociais e políticos. Nem, nunca, estes direitos prejudicaram o combate à covid-19. Prejudicariam, isso sim, o curso da propagação da pandemia do medo, em que os principais responsáveis políticos se empenharam, arrastando, com pouca ponderação, 1,3 milhões de trabalhadores para o lay-off, 170 mil independentes para a penúria e 55 mil para a sopa dos pobres.

O ambiente em que vivemos desde 3 de Maio é manifestamente inconstitucional, porque pretende suspender direitos fundamentais por uma decisão unilateral do Governo. Com efeito, a situação de calamidade colhe o seu suporte legal numa lei ordinária da AR (Lei n.º 27/2006), que não permite limitar o exercício desses direitos senão de forma temporária determinada e apenas em zonas claramente definidas do território nacional (Art.º 21.º, n.º 1, b) da citada lei).

Mas uma grande parte dos portugueses, resignada, deprimida pela campanha da promoção do medo a que foi submetida, parece querer aceitar em silêncio a limitação administrativa dos seus direitos. Vive-se, assim, numa cidadania apenas simbólica, tutelada pela polícia e pela Direcção-Geral da Saúde, que têm agora o monopólio do espaço público. Sente-se, assim, a opressão de uma espécie de religião do confinamento, que nos empurra, em rebanho, para a neurose colectiva. A retórica fascizante que a serve permitiu a António Costa armar-se em intérprete de um certo interesse superior, “diga a Constituição o que diga”, e a um comandante da GNR recordar-nos o “dever de cada um ser o polícia de si próprio”.

E, apesar de os cientistas do mainstream terem concluído que a quase totalidade das contaminações ocorreu em espaços fechados (habitações, lares e instituições de saúde), prepara-se agora o reforço das contínuas operações da PSP, da GNR e da Polícia Marítima, chamando “fuzileiros e artilheiros” (ministro do Ambiente dixit) para controlarem os perigosos areais. As medidas em estudo, refere a imprensa, admitem cercas, torniquetes, sensores, drones, vigilância privada, marcas na areia para espetar as sombrinhas e cordas para delimitar a separação entre banhistas. Por este caminho, ainda vamos ver um ajuste directo para amestrar carapaus, que vigiarão o distanciamento dentro de água.

À salvação pelo grande confinamento e pela ditadura sanitária, opõe-se uma racionalidade ponderada para combater o vírus, coexistindo com ele por via da imunidade adquirida. Trata-se da dicotomia entre um risco de infecção, probabilisticamente baixo, e uma morte lenta, mas certa, por catástrofe económica, psíquica e social, sem precedentes.

2. A casa dos professores e a casa dos alunos cederam a sua natureza privada a uma certa lógica totalitária, que o fetichismo do ensino à distância impôs. O impropriamente chamado ensino à distância invadiu a vida privada e familiar dos docentes, misturando perigosamente vida profissional e vida pessoal. Sem resistência, inebriada por essa estranha união nacional contra a covid-19, uma parte significativa dos professores alistou-se em jornadas de trabalho sem limite e disponibilizou-se para trabalhar a todo o momento, respondendo a todas as solicitações. É prudente reflectir sobre o que está a acontecer e separar águas.

Tecnólogos e tecnocratas não entendem que a interacção pedagógica exige presença. Professores e alunos sabem e sentem isso

Uma coisa é uma metodologia sólida, coerente e tecnicamente complexa de ensino a distância (maioritariamente destinado a populações adultas e definitivamente vedado a algumas áreas temáticas), outra coisa é uma solução improvisada e precária (para entreter crianças e jovens afastados da escola). Não discernir sobre a diferença entre estes conceitos pode conduzir a entusiasmos para “normalizar”, no futuro, o que agora é meramente instrumental, pobre e casuístico.

Custa-me ver que se aceite tão facilmente trocar relações pessoais por relações digitais, admitindo que a profissionalidade docente possa prescindir do contacto social e da empatia humana. Como se um colectivo de pessoas pudesse ser substituído por um colectivo de computadores, sem perda de humanidade. Tecnólogos e tecnocratas não entendem que a interacção pedagógica exige presença. Professores e alunos sabem e sentem isso. Agora, mais que nunca, interiorizaram, certamente, que uma aula tem múltiplos papeis sociais, que nenhuma máquina substitui.

Santana Castilho

At https://www.publico.pt/

Artigo de opinião: “A justiça criminosa”

ClaraPor uma vez gostava que em Portugal alguma coisa tivesse um fim, ponto final, assunto arrumado. Não se fala mais nisso. Vivemos no país mais inconclusivo do mundo, em permanente agitação sobre tudo e sem concluir nada.

Desde os Templários e as obras de Santa Engrácia que se sabe que nada acaba em Portugal, nada é levado às últimas consequências, nada é definitivo e tudo é improvisado, temporário, desenrascado. Da morte de Francisco Sá Carneiro e do eterno mistério que a rodeia, foi crime, não foi crime, ao desaparecimento de Madeleine McCann ou ao caso Casa Pia, sabemos de antemão que nunca saberemos o fim destas histórias, nem o que verdadeiramente se passou nem quem são os criminosos ou quantos crimes houve. Tudo a que temos direito são informações caídas a conta-gotas, pedaços do enigma, peças do quebra-cabeças. E habituámo-nos a prescindir de apurar a verdade porque intimamente achamos que não saber o final da história é uma coisa normal em Portugal e que este é um país onde as coisas importantes são “abafadas”, como se vivêssemos ainda em ditadura. E os novos códigos Penal e de Processo Penal em nada vão mudar este estado de coisas. Apesar dos jornais e das televisões, dos blogues, dos computadores e da Internet, apesar de termos acesso em tempo real ao maior número de notícias de sempre, continuamos sem saber nada, e esperando nunca vir a saber com toda a naturalidade. Do caso Portucale à Operação Furacão, da compra dos submarinos às escutas ao primeiro-ministro, do caso da Universidade Independente ao caso da Universidade Moderna, do Futebol Clube do Porto ao Sport Lisboa e Benfica, da corrupção dos árbitros à corrupção dos autarcas, de Fátima Felgueiras a Isaltino Morais, da Bragaparques ao grande empresário Bibi, das queixas tardias de Catalina Pestana às de João Cravinho, há por aí alguém que acredite que algum destes secretos arquivos e seus possíveis e alegados, muito alegados crimes, acabem por ser investigados, julgados e devidamente punidos? Vale e Azevedo pagou por todos. Portugal tem um défice de responsabilidade civil, criminal e moral muito maior do que o seu défice financeiro, e nenhum português se preocupa com isso apesar de pagar os custos da morosidade, do secretismo, do encobrimento, do compadrio e da corrupção. Os portugueses, na sua infinita e pacata desordem existencial, acham tudo “normal” e encolhem os ombros. Quem se lembra dos doentes infectados por acidente e negligência com o vírus da sida? Quem se lembra do miúdo electrocutado no semáforo e do outro afogado num parque aquático? Quem se lembra das crianças assassinadas na Madeira e do mistério dos crimes imputados ao padre Frederico? Quem se lembra que um dos raros condenados em Portugal, o mesmo padre Frederico, acabou a passear no Calçadão de Copacabana? Quem se lembra do autarca alentejano queimado no seu carro e cuja cabeça foi roubada do Instituto de Medicina Legal?

Em todos estes casos, e muitos outros, menos falados e tão sombrios e enrodilhados como estes, a verdade a que tivemos direito foi nenhuma. No caso McCann, cujos desenvolvimentos vão do escabroso ao incrível, alguém acredita que se venha a descobrir o corpo da criança ou a condenar alguém? As últimas notícias dizem que Gerry McCann não seria pai biológico da criança, contribuindo para a confusão desta investigação em que a Polícia espalha rumores e indícios que não substancia. E a miúda desaparecida em Figueira? O que lhe aconteceu? E todas as crianças desaparecida antes delas, quem as procurou? E o processo do Parque, onde tantos clientes buscavam prostitutos, alguns menores, onde tanta gente “importante” estava envolvida, o que aconteceu? Arranjou-se um bode expiatório, foi o que aconteceu. E as famosas fotografias de Teresa Costa Macedo? Aquelas em que ela reconheceu imensa gente “importante”, jogadores de futebol, milionários, políticos, onde estão? Foram destruídas? Quem as destruiu e porquê? E os crimes de evasão fiscal de Artur Albarran mais os negócios escuros do grupo Carlyle do senhor Carlucci em Portugal, onde é que isso pára? O mesmo grupo Carlyle onde labora o ex-ministro Martins da Cruz, apeado por causa de um pequeno crime sem importância, o da cunha para a sua filha. E aquele médico do Hospital de Santa Maria suspeito de ter assassinado doentes por negligência? Exerce medicina? E os que sobram e todos os dias vão praticando os seus crimes de colarinho branco sabendo que a justiça portuguesa não é apenas cega, é surda, muda, coxa e marreca.

Passado o prazo da intriga e do sensacionalismo, todos estes casos são arquivados nas gavetas das nossas consciências e condenados ao esquecimento. Ninguém quer saber a verdade. Ou, pelo menos, tentar saber a verdade. Nunca saberemos a verdade sobre o caso Casa Pia, nem saberemos quem eram as redes e os “senhores importantes” que abusaram, abusavam, abusam e abusarão de crianças em Portugal, sejam rapazes ou raparigas, visto que os abusos sobre meninas ficaram sempre na sombra. Existe em Portugal uma camada subterrânea de segredos e injustiças, de protecções e lavagens, de corporações e famílias, de eminências e reputações, de dinheiros e negociações que impede a escavação da verdade. Este é o maior fracasso da democracia portuguesa e contra isto o PS e o PSD que fizeram? Assinaram um iníquo pacto de justiça.

Clara Ferreira Alves

22/10/2007

At https://expresso.pt/