Tive o privilégio de ouvir, por várias vezes, o saudoso Dr. Fernando Valle dizer que “o século XIX tinha sido o século da luta pela Liberdade, o século XX o da luta pela Igualdade e que o século XXI seria o século da Fraternidade”.
Quando nos deixou, em 2004, o século mal começava mas a sua longa vida, a sua longa reflexão sobre o percurso da humanidade, as suas profundas convicções, conduziam-no a uma reflexão sobre a importância da fraternidade entre todos os membros da humanidade e os laços que devem unir todos os homens sobre toda a superfície da terra.
Nestas primeiras duas décadas do século XXI temos vivido momentos contraditórios neste percurso no sentido da afirmação e da vivência da fraternidade.
Se há múltiplos sinais positivos e, até, inovadores quer do ponto de vista programático quer, ate, do ponto de vista jurisdicional, há também momentos em que tudo parece ser posto em causa.
O ressurgir de nacionalismos sem sentido, a regressão de alguns estados no que tange ao respeito pelos direitos humanos, a limitação às liberdades individuais adentro das fronteiras da União Europeia, são impressivos sinais que devem induzir em todos aqueles que assumem a liberdade, individual e colectiva, como valor essencial, preocupações reforçadas com a marcha da humanidade.
Mais, devem impor a todos nós a disponibilidade que a responsabilidade da cidadania exige.
Atente-se, a este propósito, no que escreve Edgar Morin no seu recente livro “La Fraternité, porquoi(‘) ?”:
“A fraternidade, meio de resistir à crueldade do mundo, deve tornar-se num objectivo sem deixar de ser um meio. O fim não pode ser um termo, antes se deve transformar num caminho, no nosso caminho, o caminho da aventura humana”.
Esta afirmação é uma quase convocatória para o nosso quotidiano.
Convocatória que retoma o que já no início do século XVIII (1723) as Constituições de Anderson(2) afirmavam de forma lapidar: “a fraternidade não é só uma palavra, mas antes uma profunda realidade que se exprime nas obras de solidariedade”.
Ter sido assinalado, em 2021, o 1.° Dia Internacional da Fraternidade Humana, efeméride instituída pela ONU, deve encher-nos de satisfação.
Da trilogia que se afirma desde a Revolução Francesa e cuja defesa tantas vítimas fez em tempos de obscurantismo, a fraternidade sempre foi a mais difícil de caracterizar e aquela à qual sempre foi mais difícil dar forma vinculativa. Na vida e nos diversos ordenamentos jurídicos. Parece que estamos agora no caminho certo.
Neste primeiro Dia Internacional da Fraternidade Humana foi distinguido o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, e a activista franco-marroquina Latifa Ibn Ziaten https://youtu.be/wOv2DA66B2k.
Valerá a pena realçar o que a propósito foi dito pelos responsáveis pelo prémio: “Este prémio independente e global foi concebido para encorajar e reconhecer aqueles que nos inspiram a todos a desempenhar o nosso papel na criação de um mundo mais compreensivo, inclusivo e pacífico. Ao examinar o trabalho e o impacto de ambos os homenageados de 2021, fica claro que ambos são modelos para a próxima geração, líderes mundiais, empenhados em actividades igualmente nobres para a paz.
A propósito da atribuição deste prémio e da sua quase não divulgação na comunicação social o Padre José Maria Brito, SJ, escreveu um pequeno artigo com um título que, em si mesmo, diz quase tudo – “A fraternidade não é notícia?”.
Impõe-se que seja notícia!
Mas, impõe-se também, cada vez mais, que o Princípio da Fraternidade, tantas vezes enunciado em textos jurídicos, maxime em textos constitucionais, numa perspectiva essencialmente proclamatória, passe a ser densificado e fundamento e limite de concretas decisões jurisdicionais.
Este é um combate que aqueles que defendem a fraternidade e o primado do Estado de Direito devem assumir como imperativo ético do nosso tempo.
Suportados nalguns exemplos normativos relevantes.
Desde logo no artigo 1.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas as outras com espirito de fraternidade.”
Mas, também, dos textos preambulares de algumas Constituições, como é o caso da Portuguesa ou da Brasileira: “tendo em vista a construção de um país mais livre , mais justo e mais fraterno” ou “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos…Ou, last but not feast, o estatuído no artigo 2.° da Constituição Francesa ”O lema da Republica é: “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”.
Impõe-se, por isso, elevar o Principio da Fraternidade a verdadeiro princípio fundador, informador e enformador da nossa ordem jurídica e, mais, das decisões jurisdicionais dos nossos tribunais.
De forma sintética referem-se alguns fundamentos para isso.
- A Fraternidade enquanto expressão máxima da dignidade da pessoa humana.
- A Fraternidade como promotor de uma relação igualitária entre todos os membros da humanidade.
- A Fraternidade como princípio, fundamento e limite na relação de cada individuo para com o outro e com a sociedade.
- A Fraternidade como princípio essencial da relação entre iguais e, sobretudo, entre iguais livres.
- A Fraternidade à escala mundial e com uma dimensão intergeracional como suporte do desenvolvimento sustentável.
- A Fraternidade como valor universal, com dignidade constitucional superior, porventura supraconstitucional, que deve constar de todas as Constituições democráticas.
- A Fraternidade consagrada no direito positivo, com um conteúdo de largo alcance, e que constitua um comando para normas futuras, permitindo uma aplicação segura e previsível.
- A Fraternidade como princípio jurídico no qual se fundamentam disposições jurídicas concretas como o da protecção de imigrantes, o direito de asilo e de regularização, o direito à assistência, à segurança social ou à educação universal.
- A Fraternidade como princípio conformador da dignidade da pessoa humana e a obrigatória conciliação entre o dever de fraternidade e o direito de propriedade.
- A Fraternidade como sinónimo da assimilação de cada um, qualquer que seja a sua origem, no seio de uma colectividade de pessoas iguais em direitos e deveres.
Sabemos que este é um combate que nunca estará ganho, sabemos que a natureza humana é sempre capaz de gerar perversões que não conseguimos imaginar, nem prever.
Sabemos, também, que sempre houve, e sempre haverá, à face da terra homens livres que tudo sacrificam em nome das suas convicções e, desde logo, em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade.
E sabemos que a fraternidade tem agora uma vocação universal, uma vocação para englobar a humanidade na sua totalidade e que, independentemente do caminho percorrido por cada um de nós para lá chegar, todos temos a ganhar se considerarmos o nosso semelhante como um irmão. ■
(1) La Fraternité, de Edgar Morin, edições Actes Sud, 2019
(2) Constituições de Anderson- texto fundador da maçonaria moderna
Luís Parreirão