
Quando a minha mãe nasceu, o Sporting foi campeão nacional. Não se lembra, claro, mas foi um dia de grande felicidade lá em casa. Nesse ano de 1944, foi festa de uma pessoa só: da minha avó Francelina. O meu avô Manuel era benfiquista, mas nunca conseguiu convencê-la a quebrar os votos com aquele grande amor. Foi o primeiro, e foi eterno. Imagino-a a dançar com a minha mãe ao colo, e pergunto-me se terá intuído de alguma forma que aquela bebé de seis meses nunca mais a deixaria festejar sozinha.
A minha mãe chama-se Maria da Luz mas é desde sempre de Alvalade. Saiu à mãe, como dizia em tom desgostoso o meu avô, por ter uma descendente de coração verde. Os outros três filhos alinharam consigo pelo Benfica, mas depois havia “aquelas duas” lá em casa. Leoas.
A minha avó calou muitas dores ao longo dos anos, obedecia sempre ao meu avô, mesmo quando ele não tinha tino ou razão, mas se o Sporting jogava… aí não havia nada que a demovesse. Ele bem podia gritar, dizer que ela tinha de ir para a cozinha ou fazer isto ou aquilo, que a minha avó não ia. Fechava-se no quarto com o seu pequeno transistor a pilhas, metia-se debaixo dos lençóis e dali ninguém a tirava. Quando se enervava muito – o que era frequente – nem conseguia ouvir o relato até ao fim. A minha mãe conta que a encontrou muitas vezes encolhida na cama, com o rádio desligado, com medo de saber se a sua equipa tinha vencido ou perdido.
Com o correr dos anos, passaram a sofrer juntas. Também choraram de alegria, mas ser sportinguista – pelo menos da maneira que sempre vi a minha avó e a minha mãe agarradas aos relatos –, envolve muito sofrimento.
Num dia como o de hoje, por exemplo, a minha mãe toma um calmante logo pela manhã. Ela não o diz desta forma. Em linguagem de mãe-sportinguista diz que tomou “um comprimido para o coração”. Mas o coração sofre à mesma, e acelera quando um jogador faz uma arrancada que pode dar golo, e fica descompassado quando o árbitro apita alguma injustiça, ou um adversário magoa um dos seus “rapazes”. Se há golo, coração ao alto! Salta sempre do sofá e enche a sala de palmas, muitas palmas.
Tal como acontecia com a minha avó, habituou-se a fazer a festa sozinha. O meu pai era benfiquista, os dois filhos benquistas decidiram ser. Mas ela nunca perdeu um jogo e não deixou de celebrar (ou chorar) por estar rodeada de “encarnados”. Até ao estádio foi várias vezes sozinha. Já a fui levar e buscar a Alvalade, quando não tinha a companhia dos seus amigos do núcleo sportinguista do Tramagal. E segue a vida do clube todos os dias, pelos jornais. Conhece todos os jogadores, sabe cada pormenor das lesões, das transferências ou das táticas do treinador.
Houve uma altura em que passou umas temporadas maiores em minha casa e recordo o espanto da senhora que tem um quiosque no bairro quando passou a ter a minha mãe como cliente: “É a única pessoa que conheço que compra a Holla e o Record…!”
O Sporting ganhou e eu, que degenerei, fico feliz por empatia. O coração sofredor da minha mãe já está mais aliviado e quando lhe telefonei, no final do jogo, só lhe ouvi um lamento: “Quem me dera ser mais nova para poder ir fazer a festa com eles!”
Hoje não esteve sozinha, viu o jogo com a neta mais velha, a minha sobrinha Maria, que também é sportinguista. Nestes dias ela veste a camisola e usa o cachecol que a minha mãe lhe comprou em Alvalade (onde também já a levou), mas está longe de ter a “doença” da avó e da bisavó. Tem 16 anos, nada está perdido. Ainda há esperança na continuidade da linhagem leonina da família e, aconteça o que acontecer, hoje será um dia de boa memória para as duas.
Parabéns, mãe. E avó, aonde quer que estejas, já podes ligar a telefonia: o Sporting é campeão.
Patrícia Fonseca