Espanha licenciou a exploração de uma mina de urânio em Retortillo, a cerca de 40 quilómetros da fronteira lusa, sem consultar o Estado português nem fazer o estudo de impacto ambiental transfronteiriço. Repete-se a história de Almaraz.
O empreendimento já está a ser rasgado na província de Salamanca pela empresa australiana Berkeley, a quem foi concedida a exploração da mina em 2014. Neste tipo de minas a extração é a céu aberto. A atividade está calendarizada para 2019.
A delegação dos deputados da Comissão de Ambiente da Assembleia da República, que visitou esta segunda-feira o local onde nascerá a mina, encontrou um estaleiro montado e trabalhos de desmatação e de terraplanagem no terreno atravessado por um afluente do rio Huebra, o rio Yeltes, que desagua no rio Douro. A contaminação do rio Yeltes e os efeitos na saúde da população local preocupam os deputados e os autarcas portugueses e espanhóis.
“Uma mina de urânio tem efeitos a longo prazo. Não é o mesmo que extrair cobre ou ferro. Portugal deixou de ter minas de urânio em 2001 e o passivo ambiental ainda se mantém, assim como os efeitos na saúde das pessoas. Tanto em Espanha como em Portugal, esta extração pode implicar a destruição da fonte de sustento das comunidades. Em Espanha, a preocupação centra-se na produção agrícola e pecuária extensiva e, no nosso país, pode colocar em causa o aproveitamento turístico do património ambiental do Douro”, sublinha Pedro Soares, presidente da Comissão de Ambiente, assinalando, também, o receio de que a extração de urânio prejudique a saúde da população com contaminação radiotiva por ar e pela água, caso as escorrências da mina cheguem ao rio Yeltes.
No entanto, tal como no processo de licenciamento do armazém para resíduos nucleares em Almaraz, o Estado espanhol voltou a ignorar as regras de Bruxelas e o Estado português. E esse incumprimento e a relutância em fornecer informação ao Governo luso são confirmados na informação enviada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, aos deputados, a que o JN teve acesso.
O governante dá conta de que, quando as autoridades portuguesas receberam documentação sobre o projeto de extração de urânio em abril de 2016, Espanha já tinha emitido a declaração de impacto ambiental a 25 de setembro de 2013 e autorizado a concessão da exploração a 4 de junho de 2014. O Estado espanhol argumenta, tal como no processo de Almaraz, que consideraram não ser ” necessário realizar consultas transfronteiriças, atendendo à distância do projeto à fronteira com Portugal”. No entanto, o Governo português considera que o projeto poderá ter efeitos ambientais significativos em território nacional, “atendendo à direção dos ventos e ao facto do rio Yeltes (que divide a exploração mineira em duas zonas) ser um afluente do rio Huebra, que desagua no troço internacional do rio Douro”. Esse entendimento foi comunicado a Espanha a 30 de maio de 2016, com um pedido de envio de informação suplementar.
Quatro meses depois, as autoridades espanholas responderam para reiterar a convicção de que a extração de urânio não terá impactos transfronteiriços, negando a Portugal a oportunidade de pronunciar-se sobre o empreendimento, porque o processo de avaliação ambiental já estava concluído. O Ministério dos Negócios Estrangeiros indica, ainda, que só após “várias insistências por parte de Portugal”, é que o Ministério dos Assuntos Exteriores e Cooperação espanhol enviou documentação sobre o ponto de situação do projeto. O que falta decidir é a concessão da licença de utilização da unidade de processamento de urânio, que a australiana Berkeley pretende edificar junto à mina em Salamanca. A decisão está pendente no Conselho de Segurança Nuclear. Sem essa licença, a mina não entrará em funcionamento, garantiu a secretária de Estado dos Assuntos Europeus espanhola em setembro do ano passado.
Já no passado dia 8, “no quadro da visita do diretor-geral dos Assuntos Europeus a Madrid, o Governo espanhol comprometeu-se a facultar a informação adicional que Portugal solicitar e lembrou que “os procedimentos administrativos de licenciamento se encontram muito longe de uma conclusão que, pela sua complexidade jurídica e ambiental, não pode ser dada por adquirida”, pode ler-se ainda na informação, remetida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros aos deputados lusos. Para Pedro Soares, o esclarecimento do ministro Augusto Santos Silva revela um Estado espanhol a fugir à troca de informação, deixando Portugal novamente confrontado com um facto consumado.
“O Governo está fora de tempo. Atrasou-se em Almaraz e atrasou-se agora. Estas atitudes minam a confiança entre dois estados. Mais uma vez, o Governo espanhol não respeita a legislação europeia. É a réplica do processo de Almaraz”, lamenta Pedro Soares. Os deputados não prescindem que seja feita a avaliação de impacto ambiental transfronteiriça e vão pedir mais esclarecimentos ao ministro do Ambiente, que será ouvido, esta quarta-feira, no Parlamento.
A informação, fornecida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros aos deputados da comissão parlamentar do Ambiente, data as comunicações entre Espanha e Portugal em 2016. No entanto, o presidente do Município de Almeida, cuja fronteira dista cerca de 40 quilómetros da futura mina de Retortillo, garante que alertam as autoridades portuguesas (Agência Portuguesa do Ambiente e Direção Geral de Energia) e o Ministério do Ambiente para este empreendimento desde 2013. “Nunca obtivemos resposta até ao ano passado”, afiança António Machado.
O presidente da Câmara lembra que a mina de Retortillo não será a única, havendo projetos para extrair urânio noutra localizada a apenas quatro quilómetros do concelho de Almeida. “O Governo deve mandar elaborar um estudo dos reais impactos ambientais que a atividade de extração de urânio pode ter na bacia hidrográfica do rio Douro” e na saúde da população local. “Havendo impactos, o empreendimento terá de ser suspenso”, insiste o autarca, lamentando que, “mais uma vez”, os espanhóis não tenham cumprido a sua obrigação.
Em Espanha, está marcada uma manifestação pela plataforma Stop Urânio para sábado às 17 horas locais, em Salamanca.