
1.
Soube-se por estes dias que o valor de horas extra no Serviço Nacional de Saúde atingiu o valor mais alto de sempre. Quase 20 milhões de horas que médicos, enfermeiros e auxiliares de saúde trabalharam a mais durante o ano de 2020.
É um número astronómico que nos mostra bem a dimensão do empenho, do sacrifício, da abnegação e do seu profissionalismo.
Sabemos que o país os aplaudiu.
Sabemos que reconheceu o brutal esforço.
Sabemos que muitas palavras e homenagens foram feitas.
2.
Sabemos isso tudo, mas temos a verdadeira noção do que sacrificam os médicos?
O que têm de trabalhar?
Fazemos ideia do que se passa e da pressão numa urgência ou nos cuidados intensivos de um hospital?
Do trabalho de tantas equipas de cirurgia? Gente sempre a postos para ser chamada, disponível.
Fazemos ideia?
Temos ideia de que tantos médicos são fantasmas? Gente que abdicou da sua vida para viver a nos outros? Gente que com a vida dos outros na mão vai abandonando a sua própria? Gente que perde o foco dos filhos, dos casamentos e de si próprios para correr para o hospital, para estar disponível, para fazer o que deve ser feito?
3.
Temos verdadeira noção do que é ser enfermeiro no cenário de guerra que vivemos?
Sabem quanto ganham?
Sabem que são constantemente agredidos nas urgências por serem os primeiros a dar a cara?
Sabem dos seus horários inumanos?
Vejo-os nas imagens, vejo os seus olhos, o seu desespero, mas também os sinais que oferecem para que a esperança não morra. Porque antes dos médicos um doente vê o enfermeiro.
4.
Temos a verdadeira noção do que é o trabalho de um auxiliar de ação médica?
Porque elas, sobretudo elas, dão o corpo ao manifesto e arriscam tanto ou mais. Também elas se têm de isolar da família. Também elas têm turnos de 12 horas a ganhar praticamente o ordenado mínimo.
Como são elas que mudam as camas quando algum doente morre. São elas que mudam as fraldas dos doentes, desinfetam as paredes e lavam os mais debilitados. São elas muitas vezes a primeira cara que os doentes veem, a primeira voz que os tranquiliza, a primeira que os conforta se estão mal deitados ou angustiados. São elas que lhes dão o almoço e o jantar aos que não conseguem levar a comida à boca, são elas a acudirem ao toque das campainhas vezes sem conta. E são elas a regressar a casa, extenuadas, num transporte público para a periferia onde, assim que chegam, ainda têm de arrumar a casa, fazer a comida e tratar de tudo o resto.
5.
Sabemos que muitas homenagens foram feitas a médicos, enfermeiros e auxiliares de ação médica.
Milhões de horas extras sacrificadas para salvar vidas.
Sem olharem para trás, sem fazerem contas de cabeça.
Sabemos que não há quem goste de ser reconhecido, mas já chega de reconhecimento.
Em nome do seu esforço, do seu sacrifício e da morte de quase 15 mil portugueses e em nome também dos nossos mais velhos que continuam à espera de ser vacinados, faço um apelo aos canalhas para que não o sejam desta vez. Um apelo para que perguntem a si próprios se faz sentido a pulhice de tomar uma vacina a que nesta fase não têm direito.
Em nome de todos os que estão próximos do esgotamento por todos os dias há um ano ajudarem a salvar vidas em enfermarias enxameadas de morte e pestilência, por favor ponham a mão no que resta da vossa consciência e não façam o que o vosso instinto vos pede.
E em nome de todos os que ainda acreditam no SNS e no futuro deste país, apelo também ao primeiro-ministro para que inicie os procedimentos para que os canalhas que já o fizeram sejam o mais rapidamente chamados a tribunal.
Luís Osório