
Lá se foi mais um miserável ato eleitoral, onde seis em cada dez portugueses preferiram ficar em casa, a ver um qualquer programa urinário, a ir decidir um pouco do seu destino através de uma das poucos direitos que ainda não lhe foram retirados: o voto. Ganhou quem se sabia e por uma margem tão significativa que deveria dar que pensar ao primeiro ministro. António Costa seguiu o modo cómodo de encarar estas eleições: não apoiou ninguém, sugerindo que estava muito contente com Marcelo mas, convenientemente, deixando também a indicação ao eleitorado socialista que, caso quisessem muito, poderiam votar em Ana Gomes.
Ana Gomes avançou para as urnas com o destino traçado: seria segunda, com um carimbo na testa, colocado por António Costa, a dizer “não votem em mim, que o patrão não quer”. Marcelo esfregou as mãos, naturalmente. Sempre é melhor ganhar com mais do 60 por cento do que ser reeleito com 50 por cento.
O terceiro classificado nesta patética corrida foi quem eu esperava (acertei na totalidade da classificação). É aqui que a porca torce o rabo para uma grande parte dos eleitores que se dizem democráticos. Como é que “o fascista”, “o inominável”, “o coiso”, “o aldrabão” e sei lá mais o quê, conseguiu ficar em terceiro lugar, a morder os calcanhares do segundo? Como é que o Alentejo lhe deu tantos votos (não foram muitos, mas foi uma votação significativa em termos percentuais)?
A primeira resposta é simples: André Ventura obteve os votos de uma percentagem da população que se sente desiludida com a governação. Isto é claro e indesmentível. Muita gente está saturada de não ser ninguém na vida. O país, caso ainda não tenham reparado, tem cinco por cento de gente muito rica, dez por cento de indivíduos a que nada falta para fazerem o que querem, 30 por cento de pessoas que andam todos os meses a fazer contas para viver (umas vezes sobram cinco, outras faltam dez euros) e os restantes que, pura e simplesmente, vivem mal ou, até, miseravelmente.
É neste lote que entram os alentejanos. Para quem não sabe ou finge não ver, a maior parte dos alentejanos vive mal. Dizem que, nas aldeias, não lhes falta nada e que 500 ou 600 euros são mais do que suficientes para um casal. Esta é uma afirmação canalha. Os 500 ou 600 euros por mês chegam-lhes para não terem acesso aquilo que outros têm à mão. Chegam-lhes para comerem mal (carne de porco, queijo, bolachas e café) e para não saberem quais as vantagens de ter acesso à informação e conhecerem o que vai por esse mundo fora.Talvez muitos não saibam, ou não queiram saber, que os velhinhos de hoje no Alentejo são aqueles que, em 1974, eram os que trabalhavam nos campos (à mão, que a maquinaria era bem rara). Esses são os que hoje ganham reformas de 500 euros e, por vezes, bem menos. São os que esperam, todos os meses, pelo subsídio da Câmara Municipal (que umas vezes vêm e outras desaparece misteriosamente) para poderem comprar os medicamentos. Muitos deles vivem em lares que, por muitas condições que possam oferecer, não passam de um triste consolo para quem andou décadas ao sol e à chuva, de enxada na mão, para encher as casas de uma minoria.
O que tem isto a ver com o terceiro lugar do figurão da extrema direita, perguntam agora. Tem muito. É que depois de séculos de obscurantismo medieval, de 48 anos de fascismo e de 46 anos de democracia coxa, estas pessoas continuam pobres e esquecidas. Dos cerca de dois milhões de habitantes em 1974, o Alentejo tem hoje 500 mil, na sua maioria velhos abandonados. A terra, as grandes extensões, continua lá, à mercê de vacas, cavalos e ovelhas de muito poucos. Produção agrícola? Quase inexistente. Antes os filhos ainda iam ver os pais para, no regresso, trazerem umas batatas, um coelho, uns chouriços, umas couves. Agora? Ninguém semeia batatas, ninguém planta couves e ninguém cria coelhos, galinhas ou porcos. Vai a miséria da reforma para o lar, que há de aparecer no prato o esparguete, o arroz, uma posta de peixe cozido ou um naco de carne assim-assim.
Acham, sinceramente, que são infundadas as acusações do tal Ventura relativamente aos subsídio dependentes? Vá lá, sejam honestos. Acham que no Alentejo as pessoas que ainda lá vivem não têm medo dos furtos e roubos constantes? Perguntem à GNR, porque as estatísticas existem.
Não venham é agora dizer que o Alentejo é responsável pelo resultado eleitoral do “coisinho”, porque não é (basta verem os resultados nos grandes distritos e concelhos).
Tenham antes a coragem de reconhecer que o resultado destas presidenciais é antes o reflexo da cobardia do Governo, que se demitiu (mais uma vez) de nomear um candidato. É o reflexo do muito mal que se vive no país (e o país não são apenas os tais 15 por cento que não têm problemas económicos para fazerem a sua vida todos os meses) e é o reflexo da incapacidade de todos refletirem e remarem num só sentido. O país, caso não tenham reparado, continua a ser pobre, inculto e cheio de chicos-espertos.
Marcelo vai gozar os próximos anos como um nababo, riscando aqui e ali e preparando um bom resultado para o seu partido nas próximas legislativas. Ana Gomes, que não se vai poder sentar por ter cravada no corpo a faca que graciosamente foi bramida por António Costa, ou se empenha mais uns dias para dar algum decência democrática ao seu partido, ou se senta à mesa e escreve as memórias do tempos em que andou por Timor e pela Europa. O Ventura, esse continua a rezar para que o povo permaneça lerdo, mal instruído e pobre. Foi assim que medrou nos últimos anos. Assim e com o apoio dos verdadeiros fascistas que estão à sua retaguarda e que, quais cães, esperam babados pela oportunidade de voltarem ao antes 1974.
José Amaro