Artigo de opinião: “Pandora relacional”

ArleteAs nossas escolhas, caminhos e decisões têm um património comum: um passado. O que está para trás de nós desenha-nos. O caminho que cada um percorre tem fragmentos de: um desígnio superior e abstracto, aquilo que vulgarmente chamamos “destino”; da capacidade de tomarmos as rédeas das nossas vidas , ou seja, de fazer escolhas; do devir, o conceito filosófico que significa a mudança pelas quais passam as coisas. A expressão “Nenhum homem jamais pisa o mesmo rio duas vezes” pertenceu ao Filosofo grego Heráclito de Éfeso, o pensador que desenvolveu o conceito de devir e que defendia que nada neste mundo é permanente, excepto a mudança e a transformação.

A nossa convivência social e a nossa vivência privada não escapam ao conceito de devir. As relações não são estáticas. Há uma dinâmica permanente. Veja-se os relacionamentos de amizade. Não nos relacionamos linearmente com os nossos amigos. Vamos ajustando o tempo que estamos com eles, em função das possibilidades de cada um, e porque aamizade tem implícito o conceito de desobrigação. Os amigos são para todas as oca siões, sem que haja uma obrigatoriedade de comparência. Não perdem o rasto um dos outros, apesar dos percursos diferentes e das mudanças que potenciam o distanciamento físico. A amizade verdadeira é um laço que nunca se parte, que cria cumplicidades, e a capacidade de responder às insuficiências dos outros. Sem julgamentos, nem exigências de qualquer espécie. Talvez por isso a amizade seja uma forma de relacionamento tão robusta. Frequentemente mais que os relacionamentos amorosos, que muitas vezes colapsam perante o grau de exigência e cobrança que se vão instalando e sobrepondo à génese do sentimento.

No início das relações amorosas somos todos compreensivos, tolerantes, praticamos a generosidade e a compaixão perante o presente e o passado da pessoa a quem nos unimos. Aceitamos, queremos saber, sorvemos informação, com um grau de doçura que apela à confidência de tudo, mas tudo mesmo, até aquilo que não aguentamos saber. Não raras vezes, mais tarde, por acção do devir, da natural mudança resultante da progressão, lá vem um dia a carta (suja) que atiramos para cima da mesa. Às vezes basta uma discussão, por mais comezinha ou doméstica que seja, ou uma dor de cabeça que se instala de sopetão, para fazer saltar das entranhas a cobrança. E logo a seguir a exigência. E como a implicância é democrática, instala-se a desarmonia. E começam os tiros no próprio pé e na cabeça do parceiro. Este juízo é válido para ambos os sexos sendo que, justiça seja feita, muitas vezes somos nós as mulheres as doutoradas na matéria. Tidas como uma carochinha, airosa e formosinha, que se uniu a um rato que aparentava merecer-nos e que entretanto assumiu trejeitos de adversário. Se a saúde da nossa relação já se alimentou da expectativa positiva, da benevolência e da quantidade de coisas que amorosamente quisemos saber um do outro, é incongruente, para além de estúpido, não ter capacidade para entender que aquilo que se ouve, não pode ser “desouvido” e, por consequência “dessentido”. Se andamos todos na busca do Santo Graal, que é ser felizes por via do amor, mais vale aprender a conter o ar como se estivéssemos a treinar para os campeonatos de apneia, em vez de soltar a verve.

A verdadeira felicidade alcança-se através das relações afectivas. É por isso que o nosso mundo tomba quando o insucesso se dá. Ter alguém de quem gostamos e que faz eco em nós é um achado demasiado valioso para ser entrecortado por erros de palmatória. Idealmente a vida deveria ser um filme de amor, mas também um thriller e uma comédia. Não um drama, ou uma película de terror. Sob pena de fraturarmos o crânio, com as cabeçadas que damos na parede. E nos dias de maior fluxo emocional doi que se farta!

Arlete Calais

At Linhas de Elvas

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