Quando fui com 18 anos viver para a Alemanha pensei que Portugal era o fim do mundo. Não porque por terras de germânicas há mais riqueza. Nada me causou nos primeiros dias tanta estranheza como ver a minha colega de casa, estudante de medicina, ir às 6 da manhã, feliz, de patins, com frio, neve, para a Faculdade. Havia esfera pública. Pensei, caramba!, que lugar evoluído. Na aldeia onde temos em casa, em Portugal, que terá de distância de uma ponta à outra 1 km e meio, uma parte das pessoas vai ao café de carro e acham graça eu por lá andar de bicicleta – olham para mim como um antropólogo em África no século XIX olha o seu objecto de estudo. Os filhos estão na sua maioria fechados com uma Playstation, porque, entre outras razões, a rua é dos carros e é efectivamente perigosa. A acumulação e a circulação de mercadorias e pessoas não pode parar, por isso fecham-se as crianças em casa. Somos, nesta matéria, hoje, mais primitivos. Temos uma das mais altas taxas de morte nas estradas.
Recordo-me de, muito pequena, uma cena inesquecível. Conto-vos como a memória me trouxe ela até hoje. Estava o meu irmão e o seu grande amigo a jogar ténis num passeio na Zambujeira do Mar e nós todos a brincar na rua, e os nossos pais a conversar animados nos cafés, na altura em que era uma vila de pescadores a sério. E dois ou três homens entraram na terra, num carro, muito rápido, voaram pelo passeio, quase os atropelaram e foram bater num muro, que destruíram. E que os salvou, impedindo-os de cair na falésia. Todos no velho café Rita ficaram chocados com aqueles assassinos à solta, que por pouco não tinham morto dois jovens e a si próprios, e depois de os tirarem do carro e ver que não estavam feridos, deram-lhes um valente murro. Hoje, na Zambujeira, ou na aldeia onde tenho casa a norte do Tejo, ou na minha rua histórica, na área de Lisboa, onde o limite legal é 30km/hora, todos os dias passam uns animais, que fora do carro até podem ser pessoas humanas, a 50 e 70 km/hora. Aliás, na aldeia já por duas vezes o nosso muro foi destruído por embates de carros. E ninguém ousa dar um murro, que seja um grito, neste delírio individualista em que estamos sufocados. Não há posições colectivas de defesa da comunidade. Isto levou a uma situação em que pedestres, crianças, ciclistas e idosos, todos vivemos com um arma apontada à cabeça – essa arma chama-se carro. Ontem morreu uma jovem de 16 anos, pode ter sido um acidente, um outro jovem que teve um AVC ao volante, por exemplo. Pode, mas é pouco provável. O que é mais provável é que ali não há limites de velocidade correctos, as passadeiras não têm lombas, avisos sonoros, listas vermelhas, e a educação para a condução é “prego no fundo” – aliás os anúncios de vendas de automóveis continuam a estimular a velocidade como acto de liberdade.
Somos prisioneiros no espaço público. Que foi completamente dominado ou por estradas ou por parques de estacionamento. O Governo, complacente com a indústria automóvel, lava as mãos disto anunciando todos os anos mortos na estrada, atropelamentos, como “acidentes”. Há, é verdade, acidentes. Mas, a maioria dos mortos não resultam de “acidentes” mas de erros evitáveis. Naturalizou-se o que é social, e não acidental – a falta de educação, de civismo, de respeito, de fiscalização, de serviço público de segurança rodoviária, e de estradas decentes. Em vários países da Europa zonas residenciais e aldeias ou ficaram sem carros ou têm um limites claro, e fiscalizados, de 30 a 50km/hora. Onde há crianças e escolas, como no Campo Grande, sempre 30km/Hora. Cá em Portugal vê-se de tudo: animais colados à traseira do carro da frente; a fazer marcha atrás acelerando; atravessando aldeias a 70 km/hora, 90 km/hora; estradas que são elas mesmo criminosas. E a polícia tem como função de quando em quando passar umas multas que visam recolher impostos. Campanhas de educação deixou de haver de todo. As pessoas, ao contrário da Zambujeira há 40 anos, desistiram de ser uma comunidade que luta e age pelo respeito mutúo.
Tenho muitos amigos, alguns próximos, que são maravilhosos e quando pegam no carro são uns animais. Disney fez um dia uma ilustração Mr Walker e Mr Wheeler – o Sr Pedestre é um homem delicado e educado, quando entrava no carro transmuta-se no Sr Rodas, uma besta incontrolável.
Raquel Varela
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