Artigo de opinião: “Tavares e o jornalismo de palanque”

Daniel 598026João Miguel Tavares escreveu que fez jornalismo quando leu o seu discurso oficial do 10 de Junho. Quando eu escrevo um artigo de opinião num jornal estou a fazer, segundo ele, política; quando ele faz discursos em acontecimentos políticos está a fazer jornalismo independente. É o mundo de pernas para o ar.

Há bastantes anos que jornalistas bastante engajados me explicam que eu sou obviamente um político. Tendo a honestidade que falta a alguns deles de dar a minha opinião por completo, não escondendo o lugar onde me situo, presto-me a isso. Mas sei o suficiente da história do jornalismo para não confundir honestidade e rigor com neutralidade. Curiosamente, os jornalistas que se mostram mais puros no julgamento da impureza dos outros são quase sempre os que, de forma pouco transparente e violando o contrato com os leitores, usam notícias para dar opiniões. Quando esses jornalistas muito militantes mas pouco transparentes declaram que não tenho a pureza para ser jornalista não me incomodo. Tenho confiança suficiente no que faço para não sentir necessidade de fazer parte de qualquer tribo. Eu não sou uma profissão, sou mesmo o que faço dela. E faço tudo de forma honesta e clara. Isso facilita-me a vida.

Reagindo ao meu artigo, João Miguel Tavares escreveu que fez jornalismo quando leu o seu discurso oficial do 10 de junho. Que eu é que faço política. Quando eu escrevo um artigo de opinião num jornal estou a fazer, diz ele, política; quando ele faz discursos em acontecimentos políticos está a fazer, diz ele, jornalismo. É o mundo de pernas para o ar.

Quem dá opinião nos seus espaços quer ser “pitonisa de São Bento”, ele fala a convite do Presidente, no palanque emprestado pelo Presidente, na cerimónia de Estado organizada pelo Presidente, e é um jornalista independente. Porquê? Porque ele, apesar de todo o seu espetáculo ter sido encenado por um político no Palácio de Belém, não é “desses”. Mesmo quando fala do lugar dos porta-vozes. Literalmente. Sendo indiferente se o que fez no 10 de junho é política ou, por absurdo, jornalismo, certo é que o fez a convite do poder.

Sei que estraga o boneco que quer fazer de si, mas parece que os políticos gostam dele. Tanto, que o transformaram na sua mascote. Costa toma-lhe conta dos filhos, Marcelo leva-o pela mão ao palco do 10 de junho. E, coisa enternecedora, fazem-no sentir subversivo. Acho excelente. Mas isso sou eu, que não vivo os sofrimentos de Tavares.

O meu mundo não se divide entre “eles”, os políticos que fazem política, e “nós”, os jornalistas que os criticam. Eles que dizem o “como”, nós que só damos “chaves de interpretação” objetivas – a não ser quando nos apetece dar as nossas soluções, como tantas vezes já fez o João. Eu vivo nesse mundo infetado onde todos fazem política e todos os que têm poder no espaço público são poder.

No mundo do João Miguel Tavares as coisas estão de tal forma compartimentadas que isso lhe permite ser nomeado pelo poder político para dirigir um acontecimento estritamente político e, no entanto, sentir que aquilo é outra coisa qualquer. Só porque ele lá está. A clareza com que julgamos ver as coisas pode ter uma capacidade extraordinária de nos cegar. Ou de julgarmos que cegamos os outros.

Daniel Oliveira

At https://expresso.pt/

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