O editorial de Le Monde é hoje dedicado ao passe de Durão Barroso, da presidência da Comissão Europeia para o Goldman Sachs. O diário francês de referência diz as últimas do banco e do novo banqueiro.
O editorial de Le Monde não tem assinatura e apresenta-se portanto com o peso de uma opinião colectivamente assumida pelo jornal e sobre um tema reputado essencial na actualidade política. Pode portanto admitir-se que cada palavra foi pesada e medida, e que nenhuma delas pode ser posta na conta de uma derrapagem.O artigo começa por referir-se ao “Brexit” como um golpe profundo sobre a União Europeia (UE), para logo acrescentar que, apesar da sua profundidade, foi um golpe “leal, democrático”. O intróito serve, contudo, para sublinhar o contraste entre o golpe sofrido com o “Brexit” e aquele, desferido contra a UE à laia de punhalada nas costas pelo antigo presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, ao aceitar o lugar de presidente do Goldman Sachs.
Que José Manuel Barroso … não encontre nada melhor, umas semanas depois do Brexit, do que integrar-se nas fileiras do Goldman Sachs, eis algo que desfere um segundo golpe contra a UE. E esse é baixo, indigno.
Segundo Le Monde, a baixeza e a indignidade do golpe de Barroso resulta, nomeadamente, de ele “alimentar um pouco mais um discurso antieuropeu que releva com demasiada frequência da teoria da conspiração”.
Seguidamente, recorda-se que o Goldman Sachs não é um banco qualquer e sempre se tem distinguido pelos maus motivos da média, em si mesma nem sempre recomendável dos seus congéneres.
Le Monde sublinha, designadamente, o papel do Goldman Sachs como “pilar de Wall Street, que encarna a crise financeira de 2008 – milhões de empregos perdidos e a explosão das dívidas públicas nos Estados Unidos e na Europa”.
Impiedoso, o editorial prossegue na enumeração das tropelias do Goldman Sachs: “Ele distinguiu-se nomeadamente por ajudar a Grécia a apresentar contas trucadas para permanecer no euro”.
Com a elegância própria de uma centenária instituição do jornalismo francês, Le Monde guarda-se sempre de chegar ao ponto do presidente bielorrusso Lukashenko, que em tempos atribuíra a escolha de Barroso para o cargo eurocrático ao facto de ser, disse ele, “um idiota”. No entanto, conceptualmente, o editorial de Le Monde volta à ideia de que a escolha de Barroso deveu pouco e nada a méritos que ele possa ter, e tudo à facilidade que se prometiam os autores da escolha no momento de manipulá-lo
Ele presidiu à Comissão sem originalidade, sem suscitar a mínima ideia que pudesse renovar o ideal europeu.
Nesse sentido, o editorial responsabiliza os dirigentes dos países membros, por terem mantido no cargo um homem “desprovido do mínimo carisma”, sempre a recear “que uma personalidade de envergadura em Bruxelas pudesse fazer-lhe sombra”. E lembra que ele se estafou a repetir “as patranhas neoliberais mais simplistas da época”; que não se apercebeu da aproximação da crise de 2008
Le Monde admite que o passe de Durão Barroso para o Goldman Sachs é «légal» (aspas no original), ressalvando que ele pode ter algum parentesco com o conflito de interesses. E, para dissipar as dúvidas sobre a relação “incestuosa” entre poder público e finança privada, sugere que a Comissão Europeia mude as suas regras e proíba, doravante, que um dos seus antigos membros se ponha ao serviço de interesses privados em áreas que tutelou.
Legal ou não, aquém ou além do limite da legalidade, a questão colocada no editorial é, contudo, política: o gesto “revoltante” de Barroso, ao aceitar “contribuir desse modo para o discurso dos movimentos protestatários antieuropeus de extrema-direita, aqueles mesmos que ameaçam o carácter democrático do continente”.
At RTP